Quando o tempo fala, é bom escutar

Quando o tempo muda a gente precisa ouvir quem já alertava faz tempo

Na manhã de sexta, fui abrir a porta de casa como faço desde que me entendo por gente, com o café quente na mão e o rádio chiando ao fundo. A surpresa veio logo de cara: a rua sumida em neblina, pesada, densa, dessas que a gente só via em foto tirada em cidade do sul. Aqui em Aparecida, isso era raro. Agora, já nem sei se é.

Liguei a televisão, e a notícia era ainda mais assombrosa: havia nevado no Brasil. Não era granizo, não era geada — era neve mesmo. Caindo branca no chão, cobrindo paisagens. O apresentador tentava parecer animado, mas não escondia o susto. É bonito de ver, mas dá um aperto no peito. Porque o tempo mudou — e não foi pouco.

Nessas horas, eu penso nos que alertam. Nos que desde muito antes falavam que ia chegar assim: bagunçado, extremo, desgovernado. Gente que apanhou, foi ridicularizada, chamada de exagerada, mas que insistiu. Que bateu na mesma tecla mesmo quando ninguém queria escutar. Hoje, com o céu nos engolindo e o sol se escondendo no meio do outono, fica difícil duvidar.

O que me entristece é ver que justamente quem sempre tentou proteger a natureza continua sendo alvo fácil de ataque. Essa semana, o alvo preferido foi aquela mulher que ocupa a pasta ambiental em Brasília. Conhecida por ser firme e por não se dobrar a interesses que mascaram exploração com nome de desenvolvimento. Estavam lá, de novo, tentando desqualificá-la.

E é sempre igual: dizem que ela atrapalha o progresso, que dificulta negócios, que quer transformar o Brasil numa reserva. Não falam com argumentos — falam com raiva. Porque ela não joga o jogo deles. Porque exige licenças, estudos, responsabilidades. Porque não fecha os olhos pra desmatamento. E porque é mulher, o que pra muitos ainda parece ser um problema em si.

Não é qualquer mulher, não. É uma que não veio de berço de ouro, que carrega na pele a cor e o sotaque do Brasil esquecido. Que fala de floresta como quem fala da casa da infância. E que, por isso, não mede discurso — mede consequência.

Tem quem ache que ela fala demais. Mas quando silencia, também criticam. Dizem que deveria se posicionar. Dizem que não tem comando. Ou seja: nunca está bom. E eu fico pensando — se fosse homem, falaria com autoridade. Sendo mulher, vira arrogância. Se fosse branco, seria técnico. Sendo negra, é emocional. Essa régua torta que usam já entregaria muito, se a gente prestasse atenção.

Enquanto isso, o clima enlouquece. O rio que era pra estar cheio seca. A fruta da época não vinga. A chuva some quando mais se precisa e volta como enxurrada. E quem sempre disse que isso ia acontecer segue ali, tentando puxar o freio, sendo acusado de frear o país.

E aí eu me pergunto: quem tá travando o progresso, de verdade? Aquele que quer preservar, ou aquele que lucra devastando?

Porque toda vez que falam mal dela, é bom olhar quem está por trás. Raramente é alguém preocupado com o futuro do neto, como eu. Quase sempre é gente de pasto, de minério, de grilagem. Gente que mede riqueza por hectare e esquece que o solo um dia esgota.

E agora, que a natureza responde com gelo e fumaça, com seca e nevoeiro, essa mulher, que antes chamavam de radical, virou referência mundial. Os que antes zombavam agora ficam sem fala quando veem o mundo inteiro vindo buscar conselho aqui.

Mas ainda assim tentam desmoralizar. E eu entendo por quê. É mais fácil deslegitimar quem incomoda. Mais ainda se for mulher. E mais ainda se for uma mulher que não se cala, mesmo depois de tantas tentativas de apagamento.

A cidade coberta de névoa me lembrou isso. O tempo está gritando. E só escuta quem quer. Aquela voz, que há décadas fala em cuidado, agora soa mais urgente do que nunca. E mesmo assim, é tratada como estorvo. Porque não é conveniente. Porque não faz vista grossa. Porque não se cala.

Talvez o problema seja exatamente esse: ela não ser moldável. Ela não se encaixar no papel de enfeite. Não ser aquela que sorri e concorda. Mas, sim, aquela que estuda, propõe, cobra. Que bota dedo na ferida e exige consequência.

E o povo? Uma parte segue repetindo o que ouviu no rádio. Outra parte já entendeu que precisamos escutar quem sabe do que está falando — ainda que isso nos tire da zona de conforto.

Eu fico do lado de quem avisa. De quem, mesmo machucado, segue apontando os riscos. Porque prefiro um futuro incômodo a um presente confortável e mentiroso. E porque, sinceramente, acho que não temos muito tempo.

Torço pra que o Brasil, um dia, entenda isso.

Antes que seja tarde.

Antes que o tempo pare de falar e comece a cobrar ainda mais.

Escrito Por

Aos 65 anos, Sebastião carrega nas mãos a memória de uma cidade inteira. Chegou em Aparecida no fim dos anos 70, quando tudo ainda era barro e promessa. Foi serralheiro por décadas até se aposentar — cada portão, cada grade, um pedaço da sua história. Entre a missa e o noticiário, não se cala: cobra, opina, representa quem construiu Aparecida com suor.

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