Quando a voz se cala e o mundo escuta

sebastiao

Não sou homem de escutar muito rock, nem de dançar ao som de axé ou funk. Meu coração bate mais compassado quando ouço uma sanfona chorando, uma viola dedilhada com sentimento. Cresci ouvindo Tonico e Tinoco, depois fui embalando minha lida com Tião Carreiro e João Mineiro. Mas mesmo quem vive no sertão da música, como eu, sente quando o mundo perde duas vozes que fizeram história.

Essa semana, recebi no grupo da família a notícia da morte da cantora Preta Gil. Mais tarde, veio outra pancada: Ozzy Osbourne também se foi. Fiquei ali, parado, olhando para o celular, como quem olha para um céu carregado sem saber se chove tristeza ou lembrança.

A Preta, mesmo que eu não acompanhasse tanto, era daquelas figuras que a gente sabia que estavam sempre por aí, rindo, falando o que pensa, com uma força que dava gosto de ver. Vi muito minha filha, Luciana, defendendo ela nas conversas aqui em casa, dizendo que a mulher enfrentou de tudo — câncer, traições, preconceito — e ainda assim continuava de pé, cabeça erguida. “É inspiração”, ela dizia. E eu entendia. Porque viver nesse mundo sendo mulher, preta, artista e ainda manter a alegria, não é coisa fácil, não.

Já o Ozzy… bom, esse eu via de longe, mas respeitava. Um sujeito que botava fogo no palco e na cabeça de uma geração. Ícone de um tempo em que a juventude queria gritar, se rebelar, tocar guitarra no volume mais alto possível. Nunca entendi bem a letra das músicas dele, confesso, mas sei que tinha gente que encontrava nelas algum sentido para continuar. E isso, olha, já é coisa demais. Porque tem hora que tudo o que a gente precisa é saber que alguém, em algum canto, está dizendo aquilo que a gente sente e não consegue falar.

A morte deles me lembrou que não é preciso gostar para reconhecer. Que o mundo é feito de sons diferentes, e cada um tem seu lugar. Eu sigo preferindo a música simples, feita na beira do fogão, entre um café e uma saudade. Mas sei que há beleza também naquelas que embalam multidões, que levantam vozes, que criam histórias.

Pensei muito nisso ontem à noite, sentado na calçada com meu neto Miguel. Ele me perguntou quem era Ozzy, e eu respondi que era um cantor de rock, desses que viveram tudo no máximo, que erraram muito, mas também deixaram um monte de gente melhor. “E a Preta Gil?”, ele quis saber. Respondi que era uma mulher de coragem, que cantava alegria mesmo nos dias mais difíceis.

Ele ficou quieto um tempo e depois disse: “Então o mundo ficou mais silencioso hoje, né, vô?”
Fiquei sem resposta. Só balancei a cabeça. Porque é exatamente isso. Quando uma voz se cala, mesmo que não seja da nossa playlist, o mundo escuta. E sente.

O rádio lá de casa hoje ficou desligado. Preferi ouvir o som do vento passando pelas árvores do Jardim Tiradentes, os latidos dos cachorros na rua de trás e os passos da vizinha que varre o quintal toda tarde. Às vezes, o silêncio também canta.

E no meio desse silêncio, ficou um pensamento: a vida é uma passagem breve, e o que a gente deixa é o que cantamos nela. Seja em estrofes bem ensaiadas ou nos improvisos do dia a dia. O importante é que nossa melodia seja nossa. Que não desafine a alma, mesmo que erre o tom de vez em quando.

Preta e Ozzy, cada um do seu jeito, deixaram a deles. E por isso, merecem respeito. Do sertão ao palco do rock, da avenida ao estúdio escuro, a música une até quem parece viver em mundos tão diferentes.

Hoje, faço silêncio por eles. E por todos nós que, um dia, também seremos lembrança.

Escrito Por

Aos 65 anos, Sebastião carrega nas mãos a memória de uma cidade inteira. Chegou em Aparecida no fim dos anos 70, quando tudo ainda era barro e promessa. Foi serralheiro por décadas até se aposentar — cada portão, cada grade, um pedaço da sua história. Entre a missa e o noticiário, não se cala: cobra, opina, representa quem construiu Aparecida com suor.

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