Quando a justiça se ajoelha
Por Sebastião Silva
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Tem dias que a gente acorda com o mundo ainda mais estranho do que foi ontem. A notícia da vez foi de uma deputada, aquela mesma que um dia correu pelas ruas com uma arma de fogo na mão, perseguindo um eleitor da oposição, dizendo que fazia tudo por “liberdade”. Agora, condenada, diz que não pode cumprir pena no Brasil. Fala que não aguentaria a cadeia, que precisa de cuidados em casa. Fugiu. E avisou: não volta.
Nessas horas, me bate um incômodo. Não só pelo absurdo do caso em si, mas pela repetição da cena. Já vi esse filme outras vezes. Um ex-deputado federal, o mesmo que teve a audácia de atirar granada contra a Polícia Federal em pleno cumprimento de ordem judicial, conseguiu continuar sua pena no conforto da própria casa. Outro, ex-presidente da República, também condenado, foi autorizado a cumprir pena num duplex de frente para o mar, alegando problemas de saúde. E assim vão, um por um, escapando.
Quando não conseguem arrastar o processo até caducar, se dizem caducos para poder escapar da cadeia.
A lógica é sempre parecida: invocam doenças, vulnerabilidades, tratamentos especiais, mesmo sendo os mesmos que até ontem falavam com voz grossa, vestiam paletó em cadeia nacional e condenavam outros sem pestanejar. Gente que se dizia forte demais pra recuar. Que gritava por justiça, por moral, por cadeia pra todos — menos pra eles.
O que me inquieta não é apenas o privilégio. É o contraste. Enquanto políticos, generais e empresários conseguem esticar processos por anos, alegar todo tipo de enfermidade, ou simplesmente desaparecer, o povo comum amarga os rigores do sistema penal sem defesa nem tempo.
Basta ver os casos que acontecem nas periferias. Gente que é presa por furto simples e apodrece na cadeia porque não tem advogado. Jovens que tomam tiro antes mesmo de se explicar. Homens e mulheres que cumprem pena em condições desumanas e, mesmo com idade avançada, não conseguem progressão de regime por não terem endereço fixo ou família com estrutura.
Teve o caso recente de uma mulher presa, grávida, que teve de parir algemada. Ela, que sequer tinha condenação definitiva, foi levada ao hospital com as mãos presas, deu à luz sem dignidade. O bebê foi levado pra UTI, e ela voltou sozinha, acorrentada, como se fosse ameaça à segurança pública. A ela, ninguém ofereceu prisão domiciliar por “fragilidade”.
Enquanto isso, quem desviou milhões, quem incentivou violência, quem atentou contra instituições, segue em casa, com aparelho de pressão no braço e vista pro mar.
Não tem como não pensar no ex-metalúrgico que foi levado preso por um processo cheio de dúvidas, julgado por um juiz que depois virou ministro do adversário político. Cumpriu 580 dias de prisão. Não teve privilégio. Não viu o velório do neto. Foi até o fim. E depois, o país inteiro descobriu que o juiz que o condenou não era neutro. E aí, mesmo com tudo isso provado, ninguém pediu desculpa. Mas aquele homem seguiu — reconstruiu sua caminhada dentro da lei. Os que o atacavam, agora, fogem da mesma justiça que tanto exigiram dos outros.
Aí a gente se pergunta: qual é o peso da justiça? Depende de quem está sentado no banco dos réus? Depende do sobrenome? Do endereço? Da cor da pele?
Porque aqui no Jardim Tiradentes a resposta é óbvia. Sabemos muito bem que se um de nós fizer só 10% do que esses fizeram, não tem laudo médico que salve. Não tem advogado de Brasília, não tem recurso ao Supremo. Tem camburão, algema e cela superlotada.
É por isso que tanta gente já não acredita mais no sistema. Não é por desrespeito à lei, é por cansaço de ver ela sendo dobrada ao gosto de quem pode. A justiça, que devia ser cega, no Brasil parece usar lupa seletiva. Enxerga com rigor quem vem de baixo. E vira o rosto quando o criminoso vem de cima.
O mais triste é ver como tudo isso é tratado com naturalidade. Manchetes suaves, notas tímidas, explicações técnicas. Dizem que é “dentro da legalidade”. E talvez até seja. Mas a legalidade sem equidade é só uma formalidade vazia. O povo quer justiça de verdade, aquela que serve como referência e não como exceção.
Eu, que já vi muita coisa nessa vida, aprendi a desconfiar de silêncio em torno de gente poderosa. E quando o silêncio é rompido, vem logo um atestado médico. Uma prescrição conveniente. Um pedido de compaixão.
Compaixão essa que o sistema nunca teve por quem tem CPF simples e endereço de periferia.
Que país é esse onde se morre por não reagir, mas se vive bem por reagir com granada?
Talvez a resposta esteja justamente nas fugas. Porque quem foge da lei, na verdade, nunca respeitou o país. E quem respeita o país, mesmo injustiçado, enfrenta a lei. Isso diz muito mais do que qualquer julgamento.
E se a justiça se ajoelha diante de alguns, o povo tem o dever de continuar em pé.

Escrito Por Sebastião Silva
Aos 65 anos, Sebastião carrega nas mãos a memória de uma cidade inteira. Chegou em Aparecida no fim dos anos 70, quando tudo ainda era barro e promessa. Foi serralheiro por décadas até se aposentar — cada portão, cada grade, um pedaço da sua história. Entre a missa e o noticiário, não se cala: cobra, opina, representa quem construiu Aparecida com suor.
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