Presidente, Presidiário
Por Sebastião Silva- Publicado em
Sebastião estava na cozinha, mexendo o café no fogão velho de boca frouxa, quando o plantão entrou na TV da sala. Ele só ouviu o volume subir de repente e a voz séria do apresentador:
— “Ex-presidente Jair Bolsonaro é preso pela Polícia Federal em Brasília…”
Ele desligou o fogo, enxugou a mão no pano de prato e foi devagar até a sala. Não era mais novidade ver presidente virar assunto de polícia, mas ainda assim doía um pouco, como se alguém tivesse riscado de novo a mesma ferida.
Sentou na ponta do sofá, ficou olhando a imagem dele na tela, cercado de agente federal, aquele sobe e desce de letreiro vermelho. Lembrou de outra época, quando mostraram Lula sendo levado pela Polícia Federal, helicóptero acompanhando de cima, gente chorando no aeroporto, rua dividida no grito. Antes disso, lá atrás, já tinha visto Collor cair em desgraça, faixa presidencial de um lado, processo, renúncia, cassação do outro.
Sebastião suspirou, quase num desabafo:
— De presidente pra preso tá um pulo, né?
Não era questão de gostar ou não de um, de odiar o outro. Para ele, o incômodo vinha de outro lugar. Era a sensação de que o cargo mais importante do país tinha virado uma espécie de cadeira elétrica política: quem senta ali, mais cedo ou mais tarde, sai chamuscado, investigado, julgado, condenado… ou tudo ao mesmo tempo.
Lembrou do tempo em que chegou em Aparecida, no fim dos anos 70. Ali perto da Vila Brasília, presidente ainda era figura meio distante, mais poderosa que real. O nome vinha no rádio, no jornal, e as pessoas falavam baixo. Parecia um posto acima do bem e do mal. Hoje, presidente é meme, é xingamento, é plaquinha em manifestação, é alvo de processo.
Ainda assim, pensou ele, era curioso: se tem presidente sendo preso, se tem ex-chefe de governo respondendo por crime, é porque as instituições, de algum jeito, estão funcionando. Pelo menos na teoria. Ninguém mais é totalmente intocável. Nem quem já morou no Palácio da Alvorada.
Sebastião passou a mão no rosto, como se quisesse arrumar os pensamentos.
— Então quer dizer que está dando certo… ou que está tudo errado? — murmurou.
De um lado, parecia um sinal de maturidade: presidente não é rei, pode ser investigado, julgado, condenado. De outro, ficava uma pergunta martelando: por que é que, em tão pouco tempo, o Brasil viu mais de um ex-presidente virar réu, virar condenado, virar preso? Será que o problema está só nos homens que ocuparam o cargo… ou tem algo torto no jeito como o poder é montado?
Lá fora, o Jardim Tiradentes seguia seu ritmo. Moto passando, cachorro latindo, vizinho discutindo no portão. A cidade não parava porque um ex-presidente foi preso em Brasília. Mas Sebastião sabia que, no ônibus, na fila da padaria, no banco da praça, o assunto ia ser só esse.
Imaginou dois meninos de 12 anos, uniforme de escola pública, conversando:
— Você viu? Prenderam o presidente.
— Qual deles?
A normalização veio nesse tipo de pergunta. Não era mais “o presidente preso”, era “mais um”. Aquilo incomodava.
Sebastião pegou o controle, abaixou um pouco o volume. O repórter seguia falando em “estado de direito”, “decisão do STF”, “prisão preventiva”, “golpe de Estado”, “tentativa de fuga”. Termos grandes, cheios de gravidade. Ele entendia o básico, mas o que batia mesmo era outra coisa: se esses presidentes todos acabaram desse jeito, que tipo de presidente o país está conseguindo produzir?
Ele não queria entrar no mérito de quem merecia mais, quem merecia menos, quem foi vítima, quem foi algoz. Essa discussão, sabia bem, acabava em grito, família brigando no Natal, amizade desfeita em grupo de WhatsApp. O que ele queria entender era o cargo em si.
— O problema tá no homem ou na cadeira? — pensou, apoiando o cotovelo no joelho.
O presidente concentra poder demais. Assina, veta, indica, nomeia, viaja, negocia, manda projeto, segura orçamento. Tudo passa por aquela caneta. Ao mesmo tempo, a pressão é imensa: empresário, militar, igreja, mercado, partido, grupo de WhatsApp, rede social. Cada um puxa pro seu lado, cada um acha que manda mais que a Constituição.
Talvez o Brasil tenha vestido o cargo de presidente com um terno de super-herói e, quando a máscara cai, aparece o óbvio: é só um ser humano, com vícios, vaidades, medo, ambição. E aí, quando junta isso com poder demais e controle de menos, a chance de dar ruim aumenta.
Sebastião lembrou das manchetes falando em “instituições funcionando”. Era verdade: ter STF julgando, polícia investigando, imprensa cobrindo, tudo isso fazia parte do jogo democrático. Mas ele não conseguia evitar outra pergunta incômoda: se está tudo funcionando, por que o topo da política nacional vira, com tanta frequência, caso de polícia?
Talvez o problema esteja antes, pensou. No jeito de fazer campanha, no dinheiro que entra por baixo da mesa, na promessa impossível que todo candidato faz na TV. Talvez esteja nos partidos que viraram sigla vazia, na forma como se ganha maioria no Congresso, na forma como se negocia apoio. Um sistema que incentiva atalho depois cobra pedágio.
Ele jamais teria coragem de dizer como tinha que ser o modelo. Não era cientista político, nem jurista, nem deputado. Era serralheiro aposentado que aprendeu a ler o mundo na marreta, no esmeril e no boletim de ocorrência do bairro. Mas sabia reconhecer quando uma peça vinha de fábrica com defeito: você pode até ajeitar na marra, mas em algum momento ela vai quebrar.
— Será que não tá na hora de repensar esse negócio de botar tanto poder numa pessoa só? — a pergunta escapou em voz alta.
Talvez um sistema com mais freios internos, mais transparência real, menos jogo de bastidor. Talvez um cargo com responsabilidades mais claras, sem essa mistura de chefe de governo, chefe de Estado, líder de torcida e influenciador digital. Talvez mais mecanismo que impeça o presidente de testar os limites da lei sem consequência rápida e visível.
Ele não tinha respostas, só perguntas. E achava até saudável que fosse assim. O perigo, na cabeça dele, era o contrário: achar normal demais que presidente vá parar na cadeia e seguir a vida como se nada estivesse acontecendo. Vendo meia dúzia comemorar, meia dúzia se revoltar, e a maioria se acostumar.
O jornal da TV mudou de assunto, entrou matéria sobre trânsito em Goiânia. Sebastião levantou, voltou pra cozinha, religou o fogo e esquentou de novo o café. Enquanto o líquido escuro começava a borbulhar, ele pensou nos netos crescendo num país onde “presidente preso” virou expressão comum.
Talvez, um dia, eles perguntem:
— Vô, sempre foi assim?
E ele, com a sinceridade de quem viu a cidade nascer, asfalto chegar, lote virar avenida, teria que responder:
— Não, meu filho. Não era. E é justamente por isso que essa história não devia ser tratada como rotina.
Por enquanto, o que dava pra fazer era o que sempre fez: observar, perguntar, desconfiar dos extremos e torcer para que o Brasil aprendesse alguma coisa com essa sequência de presidentes que acabam, mais cedo ou mais tarde, olhando o país de trás das grades.
O café ficou pronto. Lá fora, o sol já batia forte no quinta. A TV seguiu falando de Brasília, mas Sebastião sabia que a verdadeira pergunta, dessa vez, não era só “por que prenderam o ex-presidente?”.
Era outra, bem mais difícil:
— O que foi feito, afinal, com o cargo de presidente da República?
Escrito Por Sebastião Silva
Aos 65 anos, Sebastião carrega nas mãos a memória de uma cidade inteira. Chegou em Aparecida no fim dos anos 70, quando tudo ainda era barro e promessa. Foi serralheiro por décadas até se aposentar — cada portão, cada grade, um pedaço da sua história. Entre a missa e o noticiário, não se cala: cobra, opina, representa quem construiu Aparecida com suor.
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