Palavra bonita não tampa buraco

Essa semana, o prefeito esteve na Câmara pra apresentar a primeira prestação de contas da gestão. Vi pela TV. Disseram que foi uma manhã importante, com vereadores atentos, secretários presentes, números projetados na parede e palavras como “transparência”, “responsabilidade” e “planejamento” aparecendo a todo instante.

E eu penso: prestação de contas é mesmo importante. Mas quem vive o dia a dia da cidade sabe que, entre o número que aparece no telão e o que acontece nas calçadas, ainda existe um espaço grande. É nele que a gente tropeça — às vezes literalmente.

Lá perto de casa, tem umas ruas que seguem esburacadas desde o ano passado. Antes da eleição já estavam ruins. Depois da eleição, ficaram piores. Já vai pra seis meses de novo governo e, tirando uma ou outra equipe isolada que some tão rápido quanto aparece, o asfalto não mudou. Não por ali. Enquanto isso, vejo fotos nas redes sociais de avenidas sendo recapeadas do outro lado da cidade. É bonito de ver, claro. Mas Aparecida é grande. Não dá pra comemorar onde se conserta e ignorar onde nada se faz.

Na fala do prefeito, teve menção à retomada de obras de CMEIs e reformas de praças. Boa notícia, sem dúvida. Mas aqui no Jardim Tiradentes, por exemplo, ainda tem pai e mãe esperando vaga pra criança pequena. E quando lembramos que há pouco tempo professores entraram em greve, tentando apenas receber o que já têm direito, fica difícil aplaudir de pé.

Aquela paralisação me pegou fundo. Conheço professora que acorda às 5 da manhã, cruza a cidade com ônibus lotado e ainda leva caderno pra corrigir em casa. Tudo isso pra, no fim das contas, ouvir que “não há como pagar o piso nacional”. Greve, pra mim, é último recurso. E quando um professor cruza os braços, não é só por dinheiro — é por dignidade.

Mas o que fez a Prefeitura? Correu pro Judiciário. E conseguiu o que queria: fim da greve. Alegou legalidade, alegou ordem, alegou que não podia parar a máquina. E o Judiciário atendeu. Curioso como, nesse país, juiz sempre tem uma caneta afiada pra cortar o direito de quem cobra, mas quase nunca a mesma pressa pra garantir que o poder público cumpra a lei que ele mesmo aprovou.

O mesmo tribunal que manda voltar ao trabalho, não exige com igual força que o professor receba o que está previsto. Não exige que a prefeitura pague em dia, ou que o piso seja respeitado. A balança da justiça, ao que parece, ainda pende pro lado de quem já carrega pouco.

Não quero aqui dizer que tudo está errado. Seria injusto. Sei que tem obra sendo feita, que tem escola sendo reformada, que tem hospital funcionando com apoio de parceria séria. A cidade precisa disso. E mais. Aparecida é uma cidade de gente trabalhadora, que acorda cedo, que batalha, que não quer luxo — quer respeito.

O prefeito falou em reorganizar a casa. Acho justo. Só espero que, no esforço de arrumar os móveis, não se esqueçam de quem mora dentro dela. Que o discurso bonito da Câmara se transforme em remédio disponível na UBS, em merenda quente na escola, em rua sem buraco no bairro. Porque palavra bonita não tampa buraco. Nem acalma mãe que teve aula cancelada, nem resolve a angústia de servidor que ficou sem receber.

E sobre herança da gestão anterior, tenho minhas dúvidas. Não sobre a dívida — isso deve ter mesmo — mas sobre a forma como se fala dela. O antigo prefeito não era de outro grupo. Era do mesmo. Quando alguém diz que herdou a bagunça da própria casa, é preciso, no mínimo, reconhecer que deixou a luz acesa e a porta aberta.

Mesmo assim, sigo torcendo. A cidade precisa dar certo. E se tiverem boa vontade, Aparecida pode andar pra frente. Mas pra isso, é preciso que a prestação de contas venha acompanhada da prestação de cuidado. Que os números desçam da tela e caminhem até o Jardim Tiradentes, o Buriti Sereno, o Colina Azul, o Jardim Maranata, o Rosa dos Ventos… enfim, alcance todos os bairros e regiões da cidade. Que o discurso chegue inteiro até a rua.

Porque, do contrário, segue tudo como sempre: um lado ouvindo palmas no plenário, e o outro desviando de buraco com sacola de feira na mão.

Escrito Por

Aos 65 anos, Sebastião carrega nas mãos a memória de uma cidade inteira. Chegou em Aparecida no fim dos anos 70, quando tudo ainda era barro e promessa. Foi serralheiro por décadas até se aposentar — cada portão, cada grade, um pedaço da sua história. Entre a missa e o noticiário, não se cala: cobra, opina, representa quem construiu Aparecida com suor.

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