O volante, o poder e o absurdo

Tem coisa que não entra na cabeça da gente. E não é por falta de esforço, não. É porque, simplesmente, não dá pra aceitar. Um homem levantar a mão contra uma mulher já é inaceitável. Agora, querer matá-la, atropelá-la de propósito, como aconteceu essa semana aqui perto, é algo que me embrulha o estômago.

Um rapaz de apenas 24 anos tentou matar uma garota de programa jogando o carro em cima dela. Tentativa de feminicídio. E digo “feminicídio” porque é esse o nome certo — mas vou ser sincero: mesmo antes dessa palavra existir, eu já achava absurdo esse tipo de covardia. Desde menino, aprendi que homem de verdade não mede força com mulher. E agora, aposentado, pai de três filhos e com netos crescendo nesse mundo cheio de contradições, não aceito ver esse tipo de violência como se fosse só mais um caso na fila do noticiário.

Esse episódio mexeu comigo. Não só pela brutalidade, mas porque ele ecoa outras coisas que tenho visto por aí. Semana passada mesmo, saí com a família pra comer uma pizza ali no Parque Atheneu. No caminho de volta, parei no sinal ao lado de um carro esportivo desses que a gente só vê em propaganda de televisão. Ao volante, um garoto. Não devia ter mais que 16 anos. No banco do passageiro, um homem feito, de camisa cara, relógio brilhando no pulso. Pelo jeito, era o pai. Deviam estar voltando pra casa — no rumo de Goiânia, pros lados daqueles condomínios fechados que parecem outra cidade.

O menino, com o braço pendurado na janela, ria, acelerava como se estivesse no videogame. O pai, com cara de satisfação, dava risada, achando bonito. Foi aí que me deu um nó na garganta. Porque me lembrei de outro caso, não faz muito tempo: uma diarista morreu atropelada por um carro de luxo, naquela mesma região de condomínios. O motorista estava em alta velocidade, perdeu o controle e matou a mulher ali, no canteiro central, onde ela tentava apenas atravessar, para conseguir ir trabalhar, como diarista, naqueles mesmos condomínios. O motorista foi preso, mas não ficou muito tempo. Pagou 80 mil reais de indenização e seguiu a vida. A família da mulher ficou com a dor e, com sorte, um pouco de amparo financeiro. Mas justiça, de verdade, não sei se houve.

Fiquei pensando nisso o resto do caminho. Como é que chegamos nesse ponto em que a vida das pessoas — principalmente das mulheres pobres, trabalhadoras, ou que simplesmente estão tentando sobreviver como podem — vale tão pouco? Como é que alguém tem coragem de subir num carro, olhar pra uma mulher e decidir que ela merece morrer?

E pior: como é que um pai acha bonito o filho, ainda menor, assumir o volante de um carro potente, como se fosse um prêmio, um brinquedo? É assim que se planta a semente do desrespeito. É assim que se cria a ideia de que tudo se pode, tudo se compra, tudo se resolve com dinheiro.

Porque, veja bem, não estou dizendo que carro é problema. Também tive meus tempos de volante, peguei muito barro pra fazer entrega de estrutura metálica nessa cidade. Carro é ferramenta, é transporte. Mas tem gente tratando como símbolo de poder. E quando o poder encontra a impunidade, o que nasce é a arrogância. E onde tem arrogância, não sobra espaço pra empatia.

O caso do garoto de 24 anos que tentou matar a mulher com o carro é só a ponta do iceberg. É reflexo de um mundo onde a violência contra a mulher ainda é tratada como exceção, quando, na verdade, virou rotina. E isso precisa mudar. A gente precisa parar de tratar esses casos como se fossem acidentes ou deslizes. Não são. São crimes. São covardias com nome e sobrenome.

E não tem justificativa. Nenhuma. Nem ciúmes, nem raiva, nem descontrole. Nada justifica agredir, ferir ou matar uma mulher. E não importa se ela é esposa, namorada, conhecida ou, como no caso dessa semana, uma garota de programa. Todas merecem respeito. Todas merecem viver.

Aqui de casa, no Jardim Tiradentes, acompanho as notícias todos os dias. Vejo crescer o número de meninas desaparecidas, mulheres agredidas, mães de família destruídas. E fico pensando: quantos desses casos poderiam ter sido evitados com educação, com punição firme, com criação digna dentro de casa?

Porque também é dentro de casa que começa o combate à violência. É no jeito que a gente ensina os filhos a olhar uma mulher, a falar com ela, a respeitá-la. É quando um pai diz pro filho que ele pode tudo, que ele tem mais direito porque tem dinheiro ou carro, que a coisa começa a desandar. E se esse mesmo pai ainda põe o menino no volante, como vi na pizzaria, aí já não é só erro — é projeto malfeito.

Às vezes, eu me pergunto que futuro estamos construindo se não conseguimos garantir o básico: o direito de uma mulher viver em paz.

Essa semana, o tal agressor foi preso. E espero, de coração, que fique preso. Que responda pelo que fez. Que não encontre saída fácil, nem advogado milagroso. Porque só assim a justiça começa a se tornar exemplo — e não exceção.

E quanto à diarista que perdeu a vida naquela avenida de luxo, o dinheiro da indenização nunca vai apagar a ausência. Nunca vai substituir o abraço da mãe, o café da manhã da esposa, o colo da avó. E quem acha que oitenta mil reais resolvem, é porque nunca perdeu nada de verdade.

A gente precisa de mais do que leis. A gente precisa de consciência, de vergonha, e de gente que entenda que o outro também importa.

Enquanto isso não acontece, sigo aqui, observando o trânsito — de carros, de ideias e de absurdos.

Escrito Por

Aos 65 anos, Sebastião carrega nas mãos a memória de uma cidade inteira. Chegou em Aparecida no fim dos anos 70, quando tudo ainda era barro e promessa. Foi serralheiro por décadas até se aposentar — cada portão, cada grade, um pedaço da sua história. Entre a missa e o noticiário, não se cala: cobra, opina, representa quem construiu Aparecida com suor.

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