O pedaço de chão que começa no portão

sebastiao (2)

Sebastião varria a calçada em frente de casa no Jardim Tiradentes como parte de uma rotina que já não exigia pensamento. Era cedo, e o sol ainda nascia tímido por trás das casas do quarteirão. A vassoura raspava o chão com um som seco, levantando pouca poeira. Galhos finos, folhas espalhadas e um pouco de terra encostada no meio-fio eram removidos com paciência. A calçada era simples, de cimento gasto, mas permanecia nivelada, limpa e livre para quem precisasse passar — exatamente como deveria ser.

De onde estava, dava para observar o contraste que marcava a paisagem da rua. A alguns metros dali, um terreno baldio interrompia o caminho. Ali, a calçada não existia: apenas terra batida, irregular, que virava lama escorregadia quando chovia e poeira incômoda quando o tempo secava. O mato alto avançava sobre a área onde deveria haver piso, denunciando abandono antigo. Motoristas desviavam, pedestres se arriscavam, moradores reclamavam — mas o terreno seguia intocado.

Mais adiante, outro tipo de problema surgia. Ali, a calçada praticamente havia desaparecido sob o excesso. Vasos enormes, jardineiras improvisadas, árvores plantadas sem planejamento e degraus de cimento ocupavam quase todo o espaço. O que deveria ser passagem social virava um corredor apertado, e quem vinha com carrinho de bebê ou cadeira de rodas era obrigado a descer para a rua. Entre a ausência total e o excesso desmedido, o pedestre sempre acabava prejudicado.

Esse cenário se repetia em inúmeros bairros de Aparecida. Em qualquer setor da cidade, bastava caminhar alguns minutos para encontrar calçadas quebradas, blocos soltos, buracos profundos, raízes levantando o piso, restos de obra, lixo amontoado e improvisos que dificultavam a vida de quem dependia da mobilidade a pé. A responsabilidade pela calçada, embora clara na lei, era ignorada por muitos moradores e completamente abandonada por proprietários de lotes baldios — especialmente investidores distantes, que esperavam apenas a valorização do terreno enquanto o bairro arcava com os transtornos.

Enquanto varria, Sebastião pensava nas pessoas que circulavam diariamente ali. Crianças que caminhavam sozinhas até a escola; idosos que precisavam de apoio para manter o equilíbrio; trabalhadores que saíam apressados para o ponto de ônibus; mães que empurravam carrinhos de bebê desviando de obstáculos; pacientes que seguiam a pé até unidades de saúde. Cada desnível, cada buraco, cada trecho sem calçada transformava um simples deslocamento em risco calculado.

A prefeitura tinha papel importante ao abrir ruas, recapear avenidas e melhorar a iluminação, mas o cuidado público não avançava até a porta das casas. Faltava fiscalização, notificação e cobrança efetiva para quem mantinha a calçada destruída, ocupada de forma indevida ou inexistente. Sem esse controle, regras viravam recomendações esquecidas e a cidade crescia de maneira desigual, bonita no asfalto e caótica onde os pés pisavam.

Ao terminar, Sebastião encostou a vassoura no muro e observou a rua. O próprio trecho estava arrumado, mas o restante revelava o quanto ainda faltava. Respirou fundo e entrou para dentro, murmurando a lição simples que carregava há anos:

— Cidade bonita de verdade é a que respeita a calçada por onde o outro precisa passar.

sebastiao

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Aos 65 anos, Sebastião carrega nas mãos a memória de uma cidade inteira. Chegou em Aparecida no fim dos anos 70, quando tudo ainda era barro e promessa. Foi serralheiro por décadas até se aposentar — cada portão, cada grade, um pedaço da sua história. Entre a missa e o noticiário, não se cala: cobra, opina, representa quem construiu Aparecida com suor.

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