Francisco: o Papa que viveu como Cristo

Tem notícia que não chega como um susto, mas como um silêncio profundo. Foi assim quando soube da morte do Papa Francisco, logo depois da Páscoa. Já era segunda-feira cedo, ainda com o cheiro do almoço de domingo no pensamento e a lembrança do sermão sobre ressurreição ecoando dentro da cabeça. De repente, “Papa Francisco morre aos 88 anos no Vaticano”. Fiquei parado. Não chorei. Mas o peito apertou.

Francisco foi um desses homens raros, que aparecem uma vez por geração. Desde o momento em que apareceu na sacada do Vaticano em 2013, com aquele “Buona sera” simples, sem pompa, a gente já sabia que ali tinha algo diferente. E eu, que sempre fui católico desde pequeno, vi naquele homem um tipo de pastor que se parece mais com Cristo do que com rei. Isso não é pouca coisa.

Me lembro que, uma vez, ele lavou os pés de presidiários muçulmanos numa Quinta-feira Santa. Não fez aquilo pra sair bonito na foto. Fez porque acreditava que era ali que estava o Cristo: nos esquecidos, nos marginalizados, nos que não têm vez. Isso mexeu comigo. Porque, lá no fundo, eu sempre achei que a religião devia ser isso mesmo — ponte, e não muro.

Francisco foi criticado por muita gente, inclusive dentro da própria Igreja. Diziam que ele era moderno demais, brando demais, que falava de política, de clima, de pobreza. E ele falava mesmo. Falava de tudo que Jesus falaria hoje se andasse de novo entre nós. Não teve medo de chamar o sistema econômico atual de injusto, de dizer que a Terra está gritando por socorro, e que a gente tem tratado o planeta como se tivesse outro de reserva. Isso é coragem. E também é evangelho.

Ele enfrentou escândalos dentro da Igreja, puxou freio em gente poderosa, mexeu onde ninguém queria mexer. Denunciou abusos, pediu perdão às vítimas e criou mecanismos para que essas histórias tristes parassem de se repetir. Não resolveu tudo, claro — nenhum homem sozinho conseguiria. Mas teve a ousadia de começar.

Na encíclica Laudato Si, falou de ecologia com a mesma seriedade com que outros falavam de pecado. Na Fratelli Tutti, chamou a atenção do mundo pra importância da fraternidade entre os povos, das pontes entre religiões, culturas e corações. Pra ele, nenhum povo era descartável. Nenhuma vida era de segunda categoria.

E não era só discurso, não. Era gesto. Era visita a campo de refugiado, abraço em criança com deficiência, telefonema a um ateu que escreveu carta com dúvidas sobre fé. Era carta respondida pra jovem depressivo, benção pra casal em crise, escuta pra quem ninguém escutava.

E aí ele morre um dia depois da Páscoa.

Pra mim, isso tem significado. Não é coincidência. É como se o Céu tivesse esperado o domingo da ressurreição passar, pra então receber de volta aquele que passou os últimos doze anos tentando viver como o Cristo vivo. Como se dissesse: “Missão cumprida, Francisco. Pode descansar”.

Fico pensando como vai ser daqui pra frente. A Igreja perdeu mais do que um Papa. Perdeu um testemunho. E nós, que acompanhamos de longe, perdemos uma referência de coerência.

Sei que a morte é parte da caminhada. Mas tem morte que pesa mais, porque vem carregada de significado. Francisco não era só líder religioso. Era um símbolo de que é possível ser autoridade sem arrogância, ser firme sem ser cruel, ser conservador nos valores sem fechar os olhos pro mundo. Ele rompeu barreiras: foi o primeiro Papa jesuíta, o primeiro das Américas, o primeiro a escolher o nome Francisco, em homenagem ao santo dos pobres. Tudo isso já mostrava que vinha algo novo por aí.

E veio. Veio a igreja de portas abertas, o chamado ao diálogo com outras fés, a denúncia contra o racismo, contra a exploração, contra o desprezo às minorias. Veio o apoio à ciência na pandemia, o cuidado com os mais velhos, a voz firme quando o mundo inteiro estava mudo.

Mas o que mais me tocava era o jeito dele. Era o sorriso cansado, os gestos lentos, a fala pausada. Era um Papa que parecia um avô, desses que senta no banco da praça e ouve a dor da gente. Ele sabia escutar. E isso é raro. Talvez por isso, mesmo sendo um homem tão distante geograficamente, eu sentia que ele entendia o que a gente vive aqui em Aparecida, no dia a dia duro, na luta por respeito, na fé que sustenta.

Esses dias, vendo as imagens do Vaticano de luto, lembrei do que diz o Evangelho: “Pelos frutos se conhece a árvore.” O fruto de Francisco está espalhado em cada coração que ele tocou. Em cada paróquia mais aberta, em cada padre que voltou a ser próximo do povo, em cada mulher que se sentiu mais respeitada, em cada jovem que encontrou espaço na Igreja sem ser julgado.

Se tem uma coisa que me consola, é saber que a semente plantada por ele segue germinando. A Igreja vai continuar, com outro Papa, outros rumos, outras ênfases. Mas quem viu Francisco sabe que presenciou um tempo especial. Um tempo de coerência.

Aqui do meu cantinho, entre um cafezinho e outro, agradeço a Deus por ter permitido que eu vivesse pra ver um Papa que não quis aplausos, mas quis servir. E que serviu com dignidade até o fim.

Que o Cristo ressuscitado o receba de braços abertos. E que a gente, aqui embaixo, siga tentando fazer da nossa fé uma ponte e não um muro.

Escrito Por

Aos 65 anos, Sebastião carrega nas mãos a memória de uma cidade inteira. Chegou em Aparecida no fim dos anos 70, quando tudo ainda era barro e promessa. Foi serralheiro por décadas até se aposentar — cada portão, cada grade, um pedaço da sua história. Entre a missa e o noticiário, não se cala: cobra, opina, representa quem construiu Aparecida com suor.

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